sexta-feira, 30 de abril de 2021

Um casamento moderno - III

 

Ele simplesmente conduziu por horas. Parava apenas para abastecer o carro e comprar agua, e fazia-se à estrada novamente. Neste momento não existia destino, apenas a estrada. Quando deu por si estava em Vigo, junto ao mar, a comer uma sandwich comprada numa estação de serviço! Ligou finalmente o telefone. Dezenas de chamadas perdidas e mensagens de texto para as quais ele não tinha paciência no momento. Ainda não sabia o que faria.

Percebia perfeitamente o que ela queria. Aquela sensação de que ela tinha falado, também ele a tinha sentido há muitos anos atrás, antes de haver alguma hipótese de uma relação com a mulher que verdadeiramente queria. Aquela paixão que parece arrebatadora, parece que muda o mundo, mas que no fundo é uma mera ilusão que desaparece ao fim de algum tempo, e acaba por transformar a maneira como se vê a pessoa que era alvo dessa paixão. Quando as pequenas coisas como um sinal giro na face se transforma numa verruga…

Sim, ele percebia o que ela sentia, sabia que ela estava a olhar para o mundo através de óculos cor-de-rosa. O tipo, fosse lá ele quem fosse, era provavelmente um parvo qualquer que estava a conseguir dar a volta a uma mulher completamente fora da liga dele… Ou então era um gajo mesmo extremamente atraente. Não sabia. Podia estar a ser injusto com o outro.

A única coisa que ele se apercebia é que, na realidade, os vinte anos de cama partilhada pareciam ser apenas algo que ela tinha de fazer dentro do casamento. Basicamente, todo o sexo que partilharam não passou de uma obrigação. Isso não mudava o facto de ele saber que ela o amava, que era o seu confidente, que era o seu melhor amigo.

Sim, o casamento, se ela assim o quisesse, podia até sobreviver a isto… Ou então não, se a luxuria a agarrasse demais.

Mas, na verdade, quais eram as perspectivas?

Se ele fosse contra ela, se a confrontasse, se lhe negasse aquilo que ela queria, ela ia rebelar-se, iria contra si e provavelmente acabaria por trai-lo, pelas suas costas. Invariavelmente isso levaria a mentiras atrás de mentiras, dor, acusações e o casamento acabaria destruído, bem como a amizade entre ambos. Ou então, ela simplesmente optaria pelo divórcio para poder prosseguir aquilo que queria sem culpas. Mas ele tinha poucas dúvidas que isso não acabasse me tragédia para ela. E ele não queria que ela acabasse por se perder. Amava-a demais para a deixar simplesmente destruir-se.

Por outro lado, podia aceitar o que ela lhe propunha. Deixá-la esticar as asas e explorar aquela parte de si que ela sempre recalcou, provavelmente por causa da educação estrita que teve. Mas para isso ela precisava de um rochedo, no meio do mar, para poder pousar quando as asas já lhe pesassem. E, tanto quanto ele podia perceber, só ele podia ser esse rochedo.

Mas, e o que é que isso significava para ele?

Ele não sabia. Não conseguia sequer prever. A única coisa que sabia é que teria de ser esse rochedo por ela e por ele próprio. Porque com facilidade ambos se podiam perder pelo caminho.

Já sabia o que fazer. Era hora de voltar.

8 comentários:

  1. Continuo a acompanhar esta história, agora com um novo olhar (porque agora sei ser baseada em factos reais) e isso dá-lhe outra dimensão que não tinha quando a li pela primeira vez.
    Abraço e saúde

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    1. Pois, saber que a história tem um fundo real, se bem que as circunstâncias sejam ficcionais, dá um outro peso...

      Abraço e obrigado :)

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  2. Eu penso que mesmo que a história fosse totalmente ficcionada, ela teria peso.
    A história relata o momento em que se coloca na balança, a idade e a vida que se tem.
    Sejamos honestos, quem não teve este momento? Quem não se perguntou se ainda poderia ser diferente?
    Creio, que aos dias de hoje, estas dúvidas, estas perguntas estejam menos presentes. Os jovens de hoje, (nem questiono se bem, se mal) têm uma vivência completamente diversa dos seus avós, até de alguns pais.

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    1. Concordo!
      Mas também há o facto de quase toda a gente ter uma crise de meia idade e a obsessão pelo aspecto e pela juventude.
      Mas acho mesmo que, em muitos casos, estas situações (e não estou a falar só de casamentos abertos, que ainda assim conseguem ser um pouco mais honestos) são mais uma procura de se tentar viver algo que não se viveu.
      Muitas vezes não se trai por paixão pelo outro, trai-se porque se quer ver outro reflexo no espelho. E pelo caminho a apixão e os quimicos no cérebro tomam conta de udo e os resultados costumam ser devastadores, quer para os traidos, porque foram traidos, quer para os próprios traidores, porque quando passa o enebriamento dos coctails de hormonas, finalmente pecebe-se que se andou a ter um esforço enorme apenas apara andar atrás do ouro dos tolos...
      Quanto aos jovens... Vão crescer e a história vai continuar a repetir-se. Já é assim desde a noite dos tempos e continuará a ser assim... Faz parte da natureza humana... :)

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    2. "são mais uma procura de se tentar viver algo que não se viveu."

      Daí eu trazer avós e pais.
      Há que recordar que os primeiros e muitos dos segundos (muitos mais que o desejável) cresceram em lares, onde a mulher casava, quase sempre, com o primeiro namorado, virgem, e tantas vezes as indicações do que seria uma vida sexual, era dada pela mãe (sortuda) na antevéspera do casamento. Sentir emoções, e desejos não constavam do rol, eram até condenáveis.
      Com a evolução, o facto de trabalhar fora e conviver com colegas bem mais informadas e cientes da sua sexualidade mais a tal crise de idade, vieram as dúvidas e questões. A maioria, acredito piamente, limitou-se a questionar neste ou naquele momento, mas nunca teve coragem de ir mais além, pelas mais diversas razões.
      Se foram felizes, se conseguiram fazer alguém feliz? Não sei, mas tenho muitas dúvidas.
      Trabalhei numa empresa,com cento e qualquer coisa trabalhadores, a larga maioria mulheres, ouvi de tudo, vi sorrisos e olhos molhados, numa aceitação submissa de um… é a vida. Uns têm sorte, outros nem por isso.

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    3. Sem dúvida.
      E, acredita, nesses casos nem acho muito condenável, quando por vezes sabemos das histórias que estão por detrás. Toda a gente tem o direito a conhecer um pouco de felicidade na sua vida...
      Mas isto fala mais de uma geração mais jovem, que acha que tem por nascimento o direito à felicidade e uma noção bastante distorcida do que é a liberdade, e que por vezes não se apercebe da dor que inflige enquanto a exercita, esquecendo-se que a sua liberdade acaba onde a do outro começa...

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  3. Meu Caro Gil! Como vai?
    Há dias escrevi um pequeno trecho justamente a abordar a situação. A estação intermedia é fod@.

    Qus bom vê-lo por cá.
    Um abraço.

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    1. Caríssimo, é bom vê-lo por aqui também.
      Ponha o link aqui por baixo que eu faço os possíveis para furar as restrições de rede que tenho e ler :)

      Fortíssimo abraço

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O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!