quinta-feira, 29 de abril de 2021

Um casamento moderno - II

 

Tinham passado quatro meses desde aquela noite e o mundo tinha continuado igual ao que sempre foi. Pelo menos na aparência, porque dentro de Clara os sentimentos estavam cada vez mais fortes. A tal ponto que ir para o trabalho sabendo que o seu colega lá estaria a deixava excitada não só intelectualmente, mas fisicamente também. Começara a usar roupas algo mais reveladoras, maquilhagem, coisa que nunca usara antes… Sentia-se sensual e gostava deste seu lado que nunca tinha explorado.

Marcelo não ficara alheio à mudança e costumava elogiá-la. Estranhava, mas quando ela perguntava:

-Mas não gostas?

A resposta era invariavelmente:

-Adoro. – Com um sorriso luminoso.

Ela gostava dos elogios do marido, mas a verdade é que não se vestia assim para ele, mas sim para provocar o colega e sabia que a sua atitude era absolutamente letal.

Mas chegara a um momento em que tinha de haver uma decisão da sua parte e ela, na sua cabeça, estava decidida.

Tinha passado o fim-de-semana com o colega numa viagem de trabalho e só a muito custo conseguiu conter-se. Trair Marcelo era algo que não lhe passava sequer pela cabeça, por mais difícil que fosse. Apesar do que sentia, tinha a certeza do seu amor por ele.

Entrou em casa, pousou a sua pequena mala, pendurou o casaco no bengaleiro, foi à cozinha, bebeu um copo de água, mais para se acalmar um pouco do que para matar a sede, e foi directa ao escritório onde sabia que ele devia estar a trabalhar.

Abriu a porta.

-Olá! – Disse, anunciando-se.

Ele retirou os olhos do ecrã e os seus olhos iluminaram-se ao vê-la.

-Chegaste! – Disse com um sorriso aberto.

-Sim. Temos de falar!

Ele olhou para ela e percebeu que ela estava nervosa com algo. Mais uma vez sentiu os pêlos na nuca a eriçarem-se e um arrepio na espinha. O seu sorriso apagou-se, bem como a luz dos seus olhos. A mudança foi tão grande que ela quase se assustou e por momentos hesitou.

-Fala, então. – Acabou ele por responder.

Ela respirou fundo, e avançou resoluta.

-Eu quero abrir o nosso casamento!

Ele ficou completamente imóvel à sua frente, sem qualquer reacção aparente. Ao fim do que pareceu a ela uma eternidade ele perguntou:

-Quem é ele?

Ela não esperava esta pergunta de volta. Nas várias conversas que se tinham desenrolado na sua mente, nunca esta tinha sido a reacção.

-Porque é que tem de haver um “ele”?

-Porque nestes casos há sempre.

Ela pensou no que devia fazer. Decidiu-se por ser sincera.

-É um colega de trabalho.

-Aquele com quem foste em viagem?

-Sim! – Disse ela, completamente envergonhada e de alguma maneira com algum arrependimento de ter iniciado a conversa. Ela conhecia-o. Ele parecia calmo e composto, como sempre, mas lá dentro havia uma tempestade.

-Aconteceu alguma coisa entre os dois?

-Bem, sério não. Já demos alguns abraços mas o mais longe que fomos foi ele beijar-me o pescoço…

-Mais nada?

-Não! Acho que sabes que nunca te seria infiel!

-Bem, até há uns meses atrás, se alguém me dissesse que alguma vez falarias num casamento aberto eu riria à gargalhada, e no entanto…

-Marcelo, eu amo-te!

-Sabes que isso de beijar o pescoço já cruza algumas linhas…

-Sim, e peço-te perdão por isso. Aconteceu este fim-de-semana, quando nos despedimos no elevador e ele seguiu para o quarto dele e eu para o meu.

-OK. Mas tu afirmas que me amas…

-Sim, Marcelo. Muito! Sabes que sim!

-Bem, então a pergunta que te faço é: Porquê?

Ela parou. A resposta mais óbvia era simples ”Porque quero ir para a cama com ele sem me sentir culpada”, mas ela sabia a dor que essa resposta ia causar.

-Porque ele me faz sentir coisas que nunca senti e eu quero explorar estes sentimentos.

Ele olhou para ela com uma tristeza nos olhos que ela nunca vira. Dentro dela uma pequena voz apareceu que lhe disse “Já viste bem o que estás a fazer?” mas ela decidiu ignorar essa voz.

Já ele estava neste momento destroçado. Sentia-se como se a sua alma tivesse deixado o seu corpo. Sentia a sua vida a colapsar. A mulher que ele amava há trinta anos, aparentemente, nunca estivera apaixonada por si!

-E se eu te disser que não? – Acabou por lhe perguntar.

Ela pensou um pouco e depois respondeu com convicção:

-Bem, se disseres que não, acho que vou começar honestamente a considerar um divórcio!

Aquelas palavras atingiram-no como se tivesse sido colhido por um comboio de carga a alta velocidade.

Levantou-se, passou por ela, foi directo à garrafeira, serviu-se de um whisky que bebeu num só trago, enquanto as lágrimas finalmente teimavam em emergir dos seus olhos.

Não podia ficar ali. Não agora!

Agarrou no casaco, nas chaves do carro, dirigiu-se à garagem, enfiou-se no carro e arrancou completamente sem destino.

Ela viu-o a sair e de repente ficou em pânico!

“O que é que eu fiz?” Pensou para si. Tentou de imediato ligar-lhe, mas ele não atendeu. Continuou a tentar, na hora seguinte, mas ele continuou sem atender. Dentro de si, um enorme conflito. Acabou por se ir deitar a chorar, sem saber nada dele.

6 comentários:

  1. Estamos mais habituadas a que este tipo de conversa venha dele e não dela e, talvez por isso, esta história esteja a ser tão interessante de seguir. Sentir nele as reacções que costumam ser elas a ter: O sofrimento, a sensação de ter pouca importância na vida do outro, até o facto de fugir para não ter que encarar a verdade nua e crua do que está a acontecer, no tentar entender.

    É por tudo isto que tenho muita pena que não continues a escrever.

    Boa tarde, sô Gil

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    1. Boa tarde, D. Noname :)

      Sabes que hoje em dia já não é tanto assim...
      Se há uma coisa podre no actual feminismo é o sentido de direito ao que sempre foi criticado no comportamento masculino (que é descrito como toxico, mas que acaba por ser adoptado por elas, como se não fosse toxico para ambos os sexos - Se tu fazes e tóxico mas se for eu a fazer é um direito adquirido e uma afirmação).
      Daí eu explorar o tema por este ângulo.
      Além disso esta história é baseada em três histórias verídicas, e em todas elas foram elas que ao chegar a um certo ponto na vida, influenciadas por amigas e pela sociedade em geral, resolveram dar este passo...
      Estas histórias tiveram o condão de me fazer pensar e acabei por ter a compulsão d escrever isto...
      ...pode ser que ponha algumas coisas em perspectiva para alguém...
      ...mas no fundo é só mais uma história sem grandes aspirações!

      Ou seja, é preciso alguma coisa fazer-me pensar bem para sentir a compulsão de escrever seja o que for! E quando o faço, é em exclusivo para mim. É a minha maneira de organizar ideias :)

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  2. Mas, é o facto de escreveres sem pressões de agradar, a leitores ou editores, que te permite escrever da maneira como o fazes, e que me encanta. Não é escrita a metro, não tem por base agradar para vender, indo ao encontro de... É essa autonomia, esse descompromisso, ainda que compromissado com as tuas ideias, com a verdade sem laçarotes. Enfim, com uma realidade que acabamos a reconhecer existir.
    :)

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    1. Alguns acabam por reconhecer!
      Muitos estão tão entrincheirados em ideologias que não vêem os factos nem quando estes lhes entram pelos olhos e só os reconhecem quando a vida lhes dá uma chapada na tromba... ;)

      E não, não tenho pretensões de agradar seja a quem for. Às vezes nem mesmo a mim. Desde que chegue ao fim com as minhas ideias arrumadas, para mim está bom.

      Anyway...
      ...Obrigado :)

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  3. O que devo acrescentar que a Noname já não tenha dito?
    Abraço e saúde

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    1. Não precisa de acrescentar nada :) É um gosto vê-la por aqui :)

      Forte abraço :)

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