Estacionei o carro e fiquei a olhar o edifício à minha frente, aquele bloco cinzento e sem alma que se erguia como um monumento ao erro humano. Questionei-me se seria boa ideia aquilo que tencionava fazer. Provavelmente não. Mas, a esta altura, isso já não importava.
Entrei na penitenciária junto com as outras pessoas que chegavam à hora da visita. O cheiro a desinfetante misturado com ferro e pó velho era quase sufocante. À entrada, pediram-me a identificação. Fingi procurar a carteira nos bolsos e suspirei.
— Esqueci-me em casa — disse, com um tom neutro.
Mostrei então uma fotografia do meu cartão de cidadão verdadeiro no telemóvel. O guarda olhou para o ecrã, digitou qualquer coisa no computador e acabou por acenar com a cabeça, permitindo-me a passagem.
Não sabia se aquele registo poderia levantar suspeitas, mas, por precaução, ficaria apenas uns minutos.
Na sala de visitas, ampla e gélida, um funcionário indicou-me uma mesa.
O homem que eu procurava já lá estava: Jorge Santos, o antigo chefe da polícia, agora com o uniforme cinzento da prisão. O tecido pendia-lhe do corpo, e o olhar, vazio, oscilava entre o tédio e o desespero.
Aproximei-me e sentei-me à sua frente.
— Olá, Jorge.
Ele levantou os olhos, estudou-me, e franziu o sobrolho.
— Mas quem diabo é o senhor? — perguntou, com a voz cansada e rouca.
Sorri-lhe levemente.
— Até fico magoado… — disse, num tom que misturava ironia e calma. — Mas percebo. A última vez que nos vimos, o meu rosto não estava propriamente apresentável.
Jorge continuou a olhar-me, sem compreender.
Olhei em volta e voltei a fixá-lo.
— Ao que parece, os nossos amigos comuns não foram suficientes para o manter fora daqui.
Foi então que o reconhecimento lhe atravessou o rosto. Primeiro, uma faísca de dúvida; depois, a certeza.
— Você… — murmurou. — Foi você…
Limitei-me a observá-lo, em silêncio, deixando que o resto se completasse na cabeça dele.
— Dá-me demasiado crédito, Jorge — disse-lhe, por fim, num tom quase descontraído. — Como é que um pobre desgraçado como eu conseguiria destruir a carreira de um chefe da polícia?
Fez-se um breve silêncio. Inclinei-me um pouco para a frente e acrescentei, mais baixo:
— A não ser, claro, que esse chefe tivesse tanta confiança no seu próprio poder que se tivesse tornado descuidado.
O olhar de Jorge encheu-se de raiva. Os músculos do maxilar contraíram-se, a pele do rosto ficou tensa.
— Foi você… — disse, mas não como quem pergunta. Como quem constata o óbvio.
Sorri-lhe. Um sorriso leve, tranquilo, que o desconcertou ainda mais do que qualquer palavra poderia.
— Não vim incomodá-lo, Jorge. — Cruzei as mãos sobre a mesa. — Imagino que já tenha mais do que suficiente com que se preocupar. Vim apenas deixar-lhe um recado.
Ele ficou a olhar-me, imóvel, mas atento.
— Pode dizer aos nossos amigos comuns — continuei — que arranjei um novo passatempo. Um novo hobbie. E que esperem notícias.
O olhar dele estreitou-se. Eu prossegui, calmo, firme.
— Considere-se um teste, Jorge. Um ensaio. O que virá a seguir será mais sério.
Ele recostou-se na cadeira, respirando fundo, e depois soltou, entre dentes:
— Você não faz ideia com quem se está a meter. Já é um homem morto, mesmo sem o saber.
Assenti lentamente.
— Já era um homem morto muito antes de acordar naquela cama de hospital. Toda a minha vida já tinha ardido, Jorge. — A minha voz soou serena, quase fria. — Só as cinzas ainda estavam quentes. Mas agora, depois de tudo, até isso arrefeceu.
Inclinei-me ligeiramente para a frente.
— O que resta agora é só a verdade. E a verdade vai iluminar toda a gente. Por mais escuro que seja o canto onde se escondam.
Ele respirava com força, o rosto ruborizado, as veias do pescoço e das têmporas latejantes como se quisessem saltar da pele.
— O mais irónico — continuei, com um meio sorriso — é que, se a sua amiga simplesmente me tivesse dado o divórcio, eu teria sido só mais um idiota de coração partido, como tantos outros. Mas o desejo de controlo dela… e o dos vossos amigos… fez o que fez. E agora estamos aqui.
Jorge estava prestes a responder, mas não lhe dei tempo. Fiquei sério.
— Porque é que tinham de ameaçar o meu filho?
A pergunta caiu entre nós como uma pedra num poço. Nenhum som se seguiu. Ele não respondeu. Talvez porque não soubesse, talvez porque soubesse demais.
Levantei-me devagar.
— Pense nisso — murmurei, e virei-lhe as costas.
Saí rapidamente, sem olhar para trás.
O eco das portas metálicas a fechar-se atrás de mim soou quase como um aplauso fúnebre.
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