quinta-feira, 2 de outubro de 2025

A Dança Invisível



No princípio ergueu-se a chama,
do engenho nasceu o poder;
um mundo à beira da ruína
ousou sonhar, ousou vencer.

Mas sombras cresceram em segredo,
fizeram do fogo traição;
e o céu rasgou-se em cataclismo,
cobrindo de cinza o chão.

O gelo tombou sobre as terras,
os mares rugiram sem lei;
mil vozes calaram-se em trevas,
mil lares perderam quem os fez rei.

Ainda assim, de mãos erguidas,
ergueram muralhas no ar,
e na Esfera, templo suspenso,
juraram jamais quebrar.

O tempo levou gerações,
a memória tornou-se lenda;
mas no coração dos vivos
a esperança nunca se desvenda.

Pois mesmo onde a noite pesa
e o frio decide a sorte,
há sempre quem diga em segredo:

“O círculo não conhece morte.” 


Prólogo

 

O lume ardia baixo, um fogo tímido a lutar contra o frio que se infiltrava por todas as frestas da caverna. As chamas, amarelas e trémulas, faziam as sombras dançar nas paredes irregulares, como se as figuras pintadas pelo fumo ganhassem vida própria. O cheiro da carne a assar — um roedor grande, caçado ao entardecer — misturava-se ao odor acre da lenha húmida.

O avô sentava-se sobre uma pedra lisa, envolto em peles pesadas. Os cabelos, longos e grisalhos, estavam presos com um cordão de fibras secas, mas escapavam mechas que se agitavam com cada sopro de vento. Os olhos, fundos e claros, brilhavam com a luz da fogueira, mas não fitavam as chamas. Seguiam o olhar do neto.

O rapaz, pequeno demais para a túnica de peles que lhe caía pelos ombros, estava sentado junto à entrada, de pernas cruzadas. A sua respiração formava nuvens de vapor que se dissipavam depressa no ar gelado. Não tirava os olhos do exterior: a paisagem infinita, um deserto branco, onde a neve se acumulava em colinas suaves, interrompidas apenas por penedos negros como dentes a rasgar a planície.

E acima, imensa, dominando o céu, erguia-se a lua. Não era suave nem esférica como as que aparecem nos mitos de outros povos. Era irregular, coberta de cicatrizes profundas, faixas de pó e pedra. Mesmo assim, refletia com majestade a luz distante da estrela-mãe, pairando como um fantasma brilhante sobre o mundo gelado.

O neto olhava-a em silêncio, com um fascínio que o avô conhecia bem.

— É linda, não é? — murmurou o velho, a voz rouca pelo frio e pela idade.

O rapaz acenou devagar, sem desviar os olhos.

O avô deixou que o silêncio se alongasse, ouvindo apenas o crepitar da fogueira e o vento a uivar lá fora. Depois, suspirou, e as palavras saíram-lhe pesadas, quase um segredo partilhado com a própria noite:

— Ainda me lembro do tempo em que não estava lá.

O neto virou-se de repente, os olhos arregalados.

— Não estava?

O velho sorriu com amargura. A chama iluminava-lhe o rosto vincado, marcado por rugas fundas.

— Não, pequeno. O mundo já foi diferente. O céu era vazio, apenas a estrela brilhava. As terras eram verdes, os mares respiravam livres e calmos. O vento era doce, e o calor não matava. Era um mundo cheio de vida. Um mundo antes da sombra.

O rapaz, sem dar por isso, tinha-se aproximado da fogueira. Estava absorto.

O velho puxou um pedaço de carne, passou-o a uma pedra lisa para arrefecer e entregou-o ao neto. Este mordeu com avidez, mas os olhos voltaram logo à lua, lá fora, suspensa no céu como uma sentinela.

— Conta-me, avô — pediu em voz baixa. — Como apareceu?

O ancião endireitou-se, ajeitando a pele sobre os ombros. Ficou a olhar a lua durante longos segundos, como se estivesse a medir a distância entre o passado e o presente. Depois, começou a falar, e a sua voz já não era apenas dele. Era a de todas as gerações que tinham carregado aquela história.

O avô inspirou fundo, deixando que o silêncio da noite se misturasse ao som do fogo. Depois, falou devagar, quase como se estivesse a recitar palavras antigas:

— Tudo começou com números, pequeno. Linhas, cálculos, símbolos traçados em tábuas de cristal. Foi assim que os primeiros viram o que ninguém queria ver.

O rapaz franziu o sobrolho.

— Números?

O ancião sorriu, um sorriso cansado.

— Nomes que deves guardar. O primeiro chamava-se Oryan Selvek. Um físico. Era obstinado como o gelo e passava dias inteiros a seguir a dança invisível das partículas, tentando ouvir nelas a voz do mundo. Ao lado dele estava Maelis Draven, uma matemática que via padrões onde todos viam apenas ruído. Ela unia pontos, ligava fenómenos, como quem descobre constelações escondidas no nevoeiro.

O neto repetiu os nomes em silêncio, como se os quisesse gravar na memória.

— Foram eles que viram primeiro — continuou o avô. — O coração do planeta, lá no fundo, já não girava como antes. O escudo invisível, aquele que nos protegia da fúria da estrela, estava a enfraquecer. Não era apenas calor. Era algo mais profundo: o próprio núcleo a morrer.

O rapaz encolheu-se, imaginando o fogo interior a apagar-se.

— Escreveram sobre isso. — A voz do avô tornou-se grave. — Compuseram um artigo que chamaram Sobre a Diminuição do Campo Global. Mandaram-no para os sábios da época. Mas sabes o que aconteceu?

O neto abanou a cabeça.

— Nada. — O velho deixou escapar um riso sem alegria. — Ninguém lhes deu ouvidos. Eram apenas mais dois a gritar para o vento.

O rapaz aproximou-se, os olhos cheios de espanto.

— Então como é que todos souberam?

O avô inclinou-se para a frente, o rosto iluminado pela fogueira.

— Foi preciso outro nome, outro destino. Kareth Ulvon. Não era físico, nem matemático. Era um jornalista. Um homem que sabia falar ao povo. Ele leu os cálculos, procurou Selvek e Draven, ouviu-os. E depois escreveu.

Fez uma pausa, como se saboreasse o peso das palavras.

“O Coração Quebrado do Mundo.” Assim chamou à sua crónica. Lembro-me da primeira vez que ouvi esse título. Foi como um trovão. Todos perceberam. Todos temeram.

O neto repetiu em voz baixa, quase em reverência:

— O Coração Quebrado do Mundo.

— Sim. — O avô assentiu, satisfeito. — E foi aí que tudo mudou.

O velho ajeitou a pele nos ombros e estendeu as mãos nodosas ao calor da fogueira. A luz desenhava rugas profundas no seu rosto, e os olhos refletiam a dança das chamas.

— Quando a crónica de Ulvon se espalhou, não houve como ignorar. O clamor foi tão grande que os governos se viram obrigados a reunir. Pela primeira vez, deixaram de lado fronteiras, rivalidades, disputas antigas. Reuniram-se todos, pequeno, e decidiram entregar o destino do mundo não a reis nem a chefes, mas ao saber.

O neto piscou os olhos, intrigado.

— E foi aí que criaram o Conselho?

— Sim. — O avô acenou. — Treze cadeiras, erguidas acima de todas as assembleias. Treze vozes que falariam pelo mundo. Três seriam ocupadas pelos teóricos, aqueles que decifravam o invisível — matemáticos e físicos. As restantes seriam dadas às mãos práticas: engenheiros, médicos, informáticos, mestres da energia, forjadores do metal, guardiões da vida.

O rapaz repetiu, como quem recita um verso:

— Treze cadeiras. Três para os que decifram. Dez para os que fazem.

O ancião sorriu.

— Guardas bem as palavras. É isso mesmo.

Fez uma pausa e então, em tom solene, começou a enumerar:

— No centro de todos estava Seran Volith, o presidente, eleito pelos pares. Um físico de sabedoria serena, capaz de falar a linguagem dos cálculos e também a do povo. Ele era o voto final, aquele que desfazia os empates. Era a voz que equilibrava.

A chama iluminava o rosto do velho enquanto continuava:

— Ao lado dele sentavam-se os teóricos: Maelis Draven, que via padrões nas sombras; Oryan Selvek, o que primeiro escutou o abrandar do coração; e Kaelen Rhivor, que unia a teoria às engrenagens.

O neto murmurava os nomes em silêncio, tentando fixá-los.

— Depois vinham os engenheiros — prosseguiu o avô. — Daren Korrith, que ergueu cidades no vazio, e Ilvara Tren, que domava metais contra a fúria da estrela.

Seguiam-se os médicos: Relis Thovan, que curava os corpos queimados, e Nira Calven, que estudava as feridas da mente.

Os informáticos: Veyran Solith, que lia nos números as rotas dos astros, e Lurea Dhan, que guardava os segredos das máquinas contra os ladrões de poder.

Os mestres da energia e do metal: Kaelor Veyth, que fazia brilhar o fogo contido, e Selyra Vorn, que fundia ligas impossíveis em gravidade nenhuma.

Por fim, o guardião da vida: Draven Kolas, que estudava os mares e chorava pelo que se perdia neles.

O rapaz estava imóvel, fascinado, como se cada nome fosse um feitiço.

O avô baixou o tom, quase em sussurro:

— Treze vozes. Treze cadeiras. Era esse o Círculo da Matéria.

Fez uma pausa, e o neto, como se obedecesse a um ritual, repetiu com reverência:

— Treze vozes. Treze cadeiras.

— Sim, pequeno. — O velho suspirou. — Foi deles que nasceu a decisão que mudaria tudo.

— O Círculo da Matéria reuniu-se durante muitos ciclos. Debateram, calcularam, sonharam. Alguns queriam abrir fendas no solo e reacender o coração com fogo trazido da estrela. Outros propunham injetar energia nas profundezas com máquinas de fusão. Mas todas as contas, todas as simulações, mostravam o mesmo: insuficiente.

O neto inclinou-se para a frente, ansioso.

— Então… o que fizeram?

O avô sorriu, sem alegria.

— Foi Seran Volith quem se ergueu. Ele disse: “Só uma força maior que nós pode reacender o coração. Só a gravidade pode fazer girar aquilo que já não gira.”

O rapaz repetiu devagar, como se gravasse cada sílaba:

— Só a gravidade pode fazer girar aquilo que já não gira.

— Exatamente. — O velho assentiu, satisfeito. — E assim decidiram: ergueriam um corpo no céu. Um objeto tão pesado que puxaria o coração de novo ao movimento. Um mundo falso para salvar o mundo verdadeiro.

O avô parou, deixando que o eco da frase se fixasse na mente do rapaz. Depois continuou:

— Para isso, desviaram asteroides. Da cintura deixada pelos restos de um planeta antigo, arrancaram pedras mortas e guiaram-nas com fogo e ferro. Fundiram metais no vazio, montaram estruturas maiores do que qualquer cidade. E pouco a pouco, começaram a moldar a esfera.

O rapaz ergueu os olhos, fixando a lua, e o reflexo dela tremeluziu nos seus olhos como fogo.

— Aquela lua… — murmurou. — Então nasceu daí.

— Sim, pequeno. — O avô ergueu a mão ossuda e apontou a esfera brilhante no céu. — Foi feita por nós. Não é filha da estrela nem das marés. É filha da necessidade.

O silêncio voltou a cair. Só o vento enchia a entrada da gruta com o seu uivo.

O neto, com voz quase de oração, perguntou:

— E o mundo mudou?

O velho baixou os olhos, e a sua voz tornou-se um murmúrio triste:

— Mudou, sim. Mas não como esperávamos.

O fogo baixara, crepitando em brasas vermelhas. A caverna enchia-se de sombras mais densas, e o luar que entrava pela boca iluminava o rosto do neto, imóvel, atento. O avô encolheu os ombros sob a pele grossa e continuou, a voz lenta, pesada como rocha.

— A esfera cresceu no céu. Primeiro era apenas um ponto de luz, depois uma sombra irregular. No fim, tornou-se uma presença constante, visível de todos os lugares do mundo. As noites enchiam-se de clarões — quando as pedras dos asteroides chocavam contra o metal, faiscando no vazio, criando um espetáculo que parecia um festival eterno.

O rapaz sorriu, como se quisesse ter visto.

Mas o avô abanou a cabeça.

— Nem todos acreditavam, pequeno. Alguns diziam que era blasfémia pôr uma sombra diante da estrela. Chamavam-lhe “a afronta dos deuses”. Outros, mais práticos, diziam que era loucura gastar tanto quando poderíamos fugir para as colónias. Havia ainda os que veneravam a esfera como um novo astro, a Sombra Sagrada. Dividiram-se as vozes, dividiram-se os corações.

O neto mordeu o lábio, inquieto.

— E então?

— Então… — o avô suspirou fundo — vieram os dissidentes. Um grupo de radicais conseguiu alterar a rota de um dos asteroides. Não foi para a esfera que ele caiu, mas para o nosso próprio mundo.

O silêncio pesou. O neto prendeu a respiração.

— Caiu junto às terras geladas do norte. — A voz do velho era um sussurro rouco. — A explosão foi tão grande que o chão tremeu de um extremo ao outro. Uma onda de fogo correu sobre as planícies, queimando tudo à sua frente. E depois, quando o gelo derreteu, vieram as águas. Oceanos inteiros ergueram-se em muralhas, engolindo cidades, costas, florestas.

O rapaz apertou a pele ao redor do corpo, como se quisesse proteger-se do frio que nem o fogo vencia.

— Mas não foi só isso. — O avô ergueu o dedo, severo. — O impacto vaporizou o gelo, lançou fumo e cinza ao céu. A estrela deixou de brilhar sobre nós. O dia tornou-se noite. E a noite tornou-se eterna.

A fogueira estalou, e por um momento só se ouviu o vento a uivar.

O neto baixou os olhos, e a sua voz saiu trémula:

— Foi aí que o mundo morreu?

O avô fechou os olhos por um instante, como se revivesse o peso da perda.

— Sim. O planeta afundou-se em inverno e escuridão. As colónias, privadas da mãe, caíram uma a uma. E nós, os poucos que restámos… escondemo-nos em cavernas como esta, tentando sobreviver ao frio e à fome.

O velho voltou o olhar para a entrada, onde a lua brilhava no céu gelado.

— A esfera ficou. Tornou-se uma lua falsa, coberta de pedra e pó. Permanece ali, suspensa sobre nós, como testemunha e como aviso. Um monumento à nossa ambição… e à nossa queda.

O neto ficou em silêncio por muito tempo. A carne nas suas mãos tinha arrefecido, esquecida. O olhar estava preso na lua, que brilhava fria e imóvel acima do horizonte, como se escutasse também a história que fora contada.

O avô pousou a mão pesada sobre o ombro do rapaz.

— Lembra-te, pequeno. Tudo o que foste ouvir não está escrito em pedra nem em metal. Vive apenas na memória. E quando eu me for, será a tua voz que terá de repetir.

O rapaz voltou o rosto, os olhos brilhando com lágrimas contidas.

— Eu não vou esquecer.

O velho assentiu devagar.

— Não basta não esquecer. Tens de contar. Um dia terás filhos, e eles terão os deles. E cada um há de repetir o que ouviu, para que a lua no céu nunca deixe de falar.

O neto respirou fundo e olhou outra vez para a esfera iluminada. Pela primeira vez, não a viu apenas como um corpo brilhante no céu — mas como a sombra de tudo o que tinha sido perdido.

Naquela noite, quando adormeceu junto ao avô e à fogueira já em cinzas, sonhou com treze cadeiras iluminadas pela luz de uma estrela distante, e com nomes que se repetiam como um cântico.

Muitos invernos depois, o neto tornou-se homem, e como o avô antes dele, contou a mesma história aos seus filhos, ao redor de uma fogueira.

E os filhos, por sua vez, contaram-na aos seus.

Com o tempo, os nomes transformaram-se em hinos.

As frases tornaram-se versos.

“Só a gravidade pode reacender o coração.” deixou de ser ciência e passou a ser oração.

“O Coração Quebrado do Mundo.” já não era crónica, mas profecia.

Séculos depois, poucos ainda compreendiam que a lua fora construída por mãos. Já não sabiam quem tinha sido Selvek, Draven ou Volith. Mas ainda repetiam os sons, deformados pelo tempo, como se fossem nomes de deuses esquecidos.

E em cada geração, ao redor de fogueiras em cavernas geladas, um avô contava ao neto:

— É linda, não é?

E depois de um silêncio longo, dizia:

— Um antepassado nosso, de quem descendemos diretamente, ainda se lembrava do tempo em que ela não estava lá.


Sem comentários:

Enviar um comentário

O QUÊ?!?!? ESCREVE MAIS ALTO QUEU NÂO T'OUVI BEM!