quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 11

 



Fizeram-se novamente à estrada na manhã seguinte, o ar fresco da manhã a entrar pelo ligeiro entreabrir da janela. A paisagem deslizava em tons de verde e castanho, campos intercalados com pequenas povoações adormecidas.

— Para onde vamos? — perguntou Benedita, ainda com a voz sonolenta.

Óscar manteve os olhos na estrada, as mãos firmes no volante.

— Para um dos circuitos mais famosos do mundo: Le Mans.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— O que é que tem de tão especial?

— Le Mans não é só uma pista… — começou, com um tom mais vivo. — É a casa das 24 Horas, a corrida de resistência mais dura e lendária. Carros e pilotos a rodar sem parar, dia e noite, durante um dia inteiro. É um teste à mecânica, à resistência e à mente.

Fez uma breve pausa antes de continuar:

— Mas também tem a sua tragédia. Em 1955, houve um acidente horrível… um carro descontrolou-se, embateu contra as bancadas e matou mais de oitenta pessoas. Foi um dos piores momentos da história do desporto automóvel.

Benedita manteve-se em silêncio, absorvendo cada palavra.

— E depois houve a guerra entre a Ford e a Ferrari — acrescentou. — A Ford queria vencer ali a qualquer custo. Foi nessa altura que criaram o GT40, que acabou por dominar durante anos. O filme Ford vs Ferrari conta parte dessa história.

— Acho que percebo porque queres ir — disse ela, com um leve sorriso.

— Não é só paixão por carros — murmurou ele, quase num tom pessoal. — É pelo que simboliza.

Perto da hora de almoço, avistaram um pequeno restaurante de beira de estrada, com fachada de pedra e toldo vermelho já desbotado. O interior cheirava a comida caseira e vinho novo. Sentaram-se junto a uma janela e, dessa vez, escolheram pratos que ainda não tinham provado: Óscar pediu rillettes du Mans, carne de porco cozinhada lentamente e desfiada, servida com pão fresco; Benedita optou por galette de sarrasin, uma fina panqueca de trigo-mourisco recheada com queijo e presunto curado.

Comeram devagar, trocando poucas palavras mas num ambiente tranquilo. No final, Óscar pediu um café curto e forte, pagou a conta e saíram para o carro.

Ao sentar-se, ligou o telemóvel. O ecrã iluminou-se de imediato com uma avalanche de notificações, mensagens e e-mails por ler. Ele percorreu rapidamente alguns, sem grande reação, antes de pousar o telefone no suporte. Voltaram à estrada.

Poucos minutos depois, o visor do carro acendeu-se novamente, desta vez com o nome Daniel. Óscar manteve o olhar fixo na estrada, mas atendeu. A voz saiu pelo altifalante, preenchendo o habitáculo:

— Óscar? — A surpresa era evidente. — Estás bem?

— Estou — respondeu ele secamente.

— Ainda bem que atendeste… A Laura e a Clara estão muito preocupadas contigo.

Óscar manteve a voz firme.

— Então diz à minha mulher e à minha filha que estou bem. E que não precisam de mandar a polícia atrás de mim.

Houve um breve silêncio do outro lado, antes de Daniel insistir:

— Onde é que estás?

— Isso não te diz respeito. Nem a ti, nem a elas.

— Vais voltar?

Óscar respirou fundo e devolveu apenas uma não resposta, carregada de indiferença:

— Logo se vê.

O silêncio prolongou-se por alguns segundos. A voz de Daniel voltou mais hesitante:

— Óscar… tenho pensado muito no que me disseste naquela conversa. Acho que cometi um erro brutal. Tenho pensado bastante e… não sei se posso confiar na Clara.

Óscar soltou uma gargalhada seca, sem qualquer humor.

— Se calhar era melhor teres pensado nisso antes.

— As tuas palavras, nessa altura… foram duras.

— A verdade normalmente é — respondeu ele, frio. — Sobretudo para quem não quis encarar quando devia.

Sem mais, Óscar terminou a chamada, desligando o altifalante.

O resto da viagem foi em silêncio, ele com o semblante fechado, um humor carregado que parecia impregnar o ar do carro. Benedita, percebendo que não havia espaço para perguntas, limitou-se a olhar pela janela.

Só quando começaram a aproximar-se das placas que anunciavam Le Mans é que o seu olhar se suavizou e um brilho ténue lhe voltou aos olhos.

Ao entrarem na cidade, as placas que indicavam Circuit des 24 Heures du Mans despertaram um brilho diferente nos olhos de Óscar. O caminho levou-os até à entrada do complexo, onde o icónico pórtico azul e branco parecia guardar um templo do automobilismo.

Logo ao estacionar junto ao paddock, Benedita reparou no som inconfundível de motores a alta rotação a ecoar pelo ar. Não eram carros de estrada normais. A vibração, o cheiro a gasolina de alto octanagem e pneus quentes criavam uma atmosfera densa, quase palpável.

— Está a decorrer um track day — disse Óscar, com um sorriso de miúdo.

Dirigiu-se à secretaria do evento e perguntou como poderia inscrever-se. O funcionário, um homem de meia-idade com colete fluorescente, explicou-lhe que o dia já estava a terminar e que só restavam vinte minutos de pista aberta.

— Não me importa — respondeu Óscar, num tom decidido. — Ainda vou a tempo de aproveitar.

Minutos depois, regressava com dois capacetes alugados, entregando um a Benedita.

— Vai ser divertido — disse, embora o brilho nos olhos denunciasse algo mais: uma paixão quase religiosa pela velocidade.

Entraram no carro. Óscar fixou o capacete e ajustou o cinto de quatro pontos improvisado a partir do de estrada. Benedita, ainda um pouco hesitante, imitou-o, ajeitando a correia do capacete por baixo do queixo.

Passaram a barreira que dava acesso à pista e, de repente, o mundo mudou. O asfalto largo e limpo, as zebras pintadas com cores vivas e as arquibancadas vazias criavam um cenário solene.

— Pronta? — perguntou ele, já com o motor a roncar impaciente.

Ela mal teve tempo de responder antes de sentir o corpo colar-se ao banco. O carro arrancou como se tivesse acabado de ser libertado de correntes invisíveis. A aceleração esmagou-a contra o encosto, e o som grave do motor subiu até um grito metálico.

A primeira curva surgiu como um golpe súbito. Óscar travou no limite, o corpo dela projetou-se para a frente e, logo a seguir, para o lado, enquanto ele contornava o ápice com precisão. A vibração através do banco e do volante fazia o coração de Benedita acelerar tanto quanto o motor.

Na reta principal, o vento uivava junto ao carro e o velocímetro subia rápido demais para ela acompanhar. O som do motor misturava-se com o eco metálico das barreiras e o ruído abafado do capacete. Sentia-se como se estivesse a voar rente ao chão.

O carro parecia vivo — um animal liberto, finalmente solto no seu habitat natural. Óscar guiava com uma concentração fria, os olhos fixos nos pontos de travagem e nas linhas perfeitas das curvas.

— Isto é… loucura! — gritou ela, sem saber se ria ou gritava de medo.

— É liberdade! — respondeu ele, elevando a voz acima do rugido do motor.

Nas últimas voltas, Benedita deixou o medo dissolver-se em pura adrenalina. Cada curva, cada aceleração, cada mudança de marcha era um soco de energia que a deixava sem fôlego. Quando finalmente entraram nas boxes e o carro parou, ela percebeu que estava a sorrir como não se lembrava de ter sorrido há muito tempo.

Óscar retirou o capacete, respiração pesada, olhos brilhantes.

— E então? — perguntou, como quem já sabe a resposta.

Ela abanou a cabeça, ainda atordoada.

— Acho… que quero outra volta.

Ele riu-se, um riso breve mas genuíno, antes de desligar o motor e deixar que o silêncio da mecânica a arrefecer preenchesse o ar.

O sorriso de Benedita não se apagou nem quando saíram do circuito e voltaram à estrada. Era como se ainda sentisse o vento a fustigar-lhe o rosto, o rugido do motor nos ouvidos e aquela força invisível que a prendia ao banco nas curvas. Não conseguia parar de falar da experiência, descrevendo cada curva, cada reta, cada sensação como se quisesse fixar tudo na memória antes que o tempo a esbatesse.

Óscar ouvia, divertido, deixando-a falar, intervindo apenas com um ou outro comentário técnico que a fazia rir. Ele próprio estava mais descontraído, e havia algo no brilho dela que parecia contagiar-lhe o humor.

Quando chegaram ao centro de Le Mans, escolheram um restaurante de fachada discreta mas com cheiro irresistível a comida acabada de fazer. Sentaram-se numa mesa junto à janela, ainda com o lusco-fusco a pintar a rua de tons dourados. Ela pediu rillettes du Mans e ele optou por pintade fermière rôtie — pratos simples, mas de sabor profundo. Entre garfadas, ela continuava a sorrir, como se cada lembrança da pista lhe aquecesse o peito.

Depois do jantar, caminharam alguns minutos até ao hotel que Óscar tinha reservado. Era um edifício de linhas modernas, com um quarto amplo e duas camas individuais. Benedita deixou-se cair numa delas, rindo sozinha, enquanto ele verificava discretamente alguns papéis que tinha na mala do carro e os guardava.

Foi ela quem foi tomar banho primeiro. A água quente pareceu intensificar a leveza que sentia desde a tarde — como se o peso que carregava nos ombros desde há anos tivesse ficado para trás, algures numa curva de alta velocidade. Saiu de cabelo molhado, enrolada na toalha, e sentou-se na cama a secá-lo lentamente com o secador enquanto Óscar entrava para o duche.

O som da água na casa de banho misturava-se com o zumbido baixo do secador, e ela olhava de vez em quando para a porta, como se o que queria dizer lhe pesasse na língua.

Quando ele saiu, com o cabelo ainda húmido e uma t-shirt simples, ela pousou o secador, levantou-se e foi até ele. Sem uma palavra, passou-lhe os braços à volta do tronco e encostou o rosto ao peito.

— Obrigada — disse, num sussurro carregado de sinceridade. — Obrigada pelo melhor dia de sempre.

Óscar ficou por um momento imóvel, como se as palavras o apanhassem desprevenido. Depois, retribuiu o abraço, firme mas silencioso, fechando os olhos por um instante. Não respondeu com frases feitas; apenas pousou uma mão na nuca dela e ficou assim, deixando que o gesto falasse por si.


segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 10

 


Saíram de Rocamadour na manhã seguinte, quando o ar fresco ainda cheirava a pedra molhada e a lareiras apagadas durante a noite. O céu começava a clarear por trás das colinas, e a estrada estendia-se à frente como um fio cinzento serpenteando por entre campos verdes e bosques húmidos.

No carro, Benedita mantinha-se calada, com o queixo apoiado na mão e os olhos fixos na paisagem que desfilava para trás. Óscar, alheio ao seu silêncio, cantarolava com voz rouca clássicos de rock de outras décadas — músicas que pareciam trazer-lhe algum tipo de paz e que ela mal conhecia.

O tempo passava, marcado apenas pelo ronronar constante do motor. Até que, sem se virar para ele, ela perguntou baixinho:

— Tu… vais mesmo levar-me de volta?

Óscar não hesitou:

— Vou. Tenho de te levar. Não posso, em consciência, deixar-te por aí… sabendo que vão continuar à tua procura. Ou que aquele pior cenário que imaginaste… se torne real.

Ela desviou os olhos para o colo, apertando as mãos, sentindo um nó na garganta. Ficou alguns segundos em silêncio, antes de, com a voz magoada e incerta, arriscar:

— E… o que é que eu vou fazer depois?

Óscar lançou-lhe um olhar rápido e sério. O rosto endureceu, e a sua expressão tornou-se a de um homem que fala apenas quando tem a certeza absoluta do que diz. A voz saiu grave, carregada de uma promessa que não precisava de floreados:

— Até aqui… estiveste sozinha. Mas agora… tens um amigo.

As palavras caíram no interior do carro como um peso silencioso, afastando qualquer som que não fosse o leve rolar dos pneus no asfalto. Benedita sentiu um calor estranho no peito, uma mistura de alívio e vulnerabilidade. Virou o rosto para a janela, não querendo que ele visse os olhos marejados.

Óscar não disse mais nada. Apenas aumentou ligeiramente o volume da música e continuou a conduzir, como se aquela promessa fosse suficiente — e, para ela, naquele momento, talvez fosse mesmo.

A estrada seguiu-se entre colinas suaves e aldeias adormecidas. Perto do meio-dia, Óscar saiu da rota principal e seguiu por um caminho mais estreito, ladeado por vinhas e campos dourados. O destino era uma pequena povoação cujo nome Benedita nem conseguiu ler no letreiro, mas que parecia saída de um postal antigo.

No centro, uma praça de pedra irregular guardava um restaurante de fachada envelhecida, com toldos vermelhos gastos pelo sol. Lá dentro, o ar cheirava a lareira apagada, vinho tinto e pão acabado de cozer. A dona — uma mulher baixa e de olhos vivos — apresentou-lhes pratos da região: magret de pato grelhado com molho de pimenta verde, acompanhado de batatas salteadas em gordura de pato, e truta fresca dos Pirenéus grelhada com amêndoas e manteiga, servida com legumes cozidos no vapor.

Benedita nunca tinha provado nada semelhante; o sabor da truta era delicado e aromático, enquanto o pato tinha uma intensidade que se prolongava no paladar, equilibrada pelo toque fresco do molho. O vinho tinto local, servido em copos simples, aquecia-lhes o corpo e o espírito.

Comeram em relativa descontração, trocando pequenos comentários sobre o sabor da comida e as pessoas à volta, que pareciam olhar para eles com curiosidade. Depois de um café forte e de agradecerem à dona, voltaram à estrada.

O carro rolava suavemente quando, de repente, o painel central iluminou-se com um toque agudo. Um nome apareceu no ecrã: Laura.

Benedita, surpreendida, olhou de relance para Óscar. Ele manteve os olhos na estrada, mas a sua expressão mudou — uma tensão súbita na mandíbula, um endurecer dos traços. Com um gesto seco, carregou no botão para recusar a chamada.

O telemóvel, esquecido no bolso, vibrou mais uma vez. Desta vez, Óscar tirou-o, olhou para o ecrã com um ar que misturava irritação e fadiga, e desligou-o por completo, empurrando-o de volta para o casaco sem dizer uma única palavra.

O resto da viagem até Oradour-sur-Glane fez-se num silêncio que não era desconfortável, mas denso — como se cada quilómetro fosse cimentando algo que não se dizia.

Chegaram a Oradour-sur-Glane a meio da tarde. A aldeia permanecia como um fantasma preservado no tempo, cenário de um dos mais atrozes massacres da Segunda Guerra Mundial. A 10 de junho de 1944, tropas da Waffen-SS cercaram a aldeia, reuniram os homens e fuzilaram-nos nas ruas e celeiros. As mulheres e crianças foram trancadas na igreja, que foi incendiada. No final do dia, 642 pessoas estavam mortas, e o lugar foi deixado em ruínas como advertência e terror.

Agora, décadas depois, as ruas permaneciam como naquele dia: fachadas queimadas, janelas vazias, veículos enferrujados parados no meio das praças, lojas com letreiros desbotados pelo tempo, como se o dia tivesse ficado suspenso. O vento passava entre as paredes negras pelo fogo, trazendo um sussurro que parecia carregar o eco distante de gritos e silêncio.

Benedita caminhava devagar, absorvendo a gravidade do lugar. Aquela aldeia destruída falava-lhe de perda e violência, de sonhos desfeitos sem aviso — coisas que ela compreendia demasiado bem. A devastação material ecoava na sua própria sensação de vida interrompida e infância roubada.

Óscar, por sua vez, movia-se com passos firmes mas olhar distante. Para ela, era impossível adivinhar o que se passava na sua cabeça, mas havia algo na rigidez dos ombros e no silêncio obstinado que denunciava que aquelas ruínas mexiam com algo nele também. A diferença era que ele mantinha as portas fechadas, como se a sua própria aldeia destruída estivesse escondida a sete chaves.

No miraCávado, olharam juntos para o panorama: um vale de silêncio e pedra que nunca fora reconstruído. O céu começava a ganhar tons de cobre e laranja, mas a beleza da luz não conseguia suavizar a memória do que ali acontecera. Quando se afastaram, o silêncio entre os dois prolongou-se até chegarem ao pequeno hotel onde iriam passar a noite.

No hotel, o quarto era simples: duas camas individuais encostadas às paredes opostas, uma pequena secretária com um candeeiro e cortinas espessas que abafavam a luz do entardecer. Óscar pousou as chaves do carro sobre a mesa e sentou-se na beira da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça baixa, como se carregasse um peso invisível.

Benedita, que até então se limitara a observar, tirou os sapatos e sentou-se na sua própria cama. Ficou a olhar para ele durante alguns segundos, hesitando, até que, num tom quase tímido, perguntou:

— Quem é… a Laura?

Óscar levantou o olhar, surpreso pelo atrevimento dela, mas respondeu com aparente desinteresse:

— Não é ninguém importante.

Ela continuou a fitá-lo, os olhos semicerrados, desconfiada. Ele percebeu e soltou um suspiro cansado.

— É… só a minha mulher.

Benedita endireitou-se na cama, apanhada de surpresa.

— A tua mulher? — repetiu, como se confirmasse ter ouvido bem. — E porque é que não queres falar com ela?

Óscar ficou em silêncio por alguns instantes, como se medisse as palavras. Depois, recostou-se na cama, cruzou os braços atrás da cabeça e olhou para o teto.

— Porque… já falámos tudo. Já não há mais nada para dizer.

As últimas palavras ficaram a pairar no ar, carregadas de um peso que Benedita não soube interpretar, mas que lhe deu a sensação de que, tal como aquelas ruínas que tinham visitado, havia histórias e feridas que ele não estava pronto para expor.