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Não trocaram muitas palavras até estarem sentados num café de
esquina, com mesas pequenas e toalhas de papel amassadas pelo vento. Ele bebia
o café rápido, quase como se fosse remédio, e só ao segundo croissant começou a
mostrar sinais de que o humor lhe regressava ao rosto.
— Vamos dar uma volta. — disse, limpando as mãos com um
guardanapo.
Acabaram a caminhar lado a lado junto ao Canal du Midi, onde a água refletia as árvores
alinhadas e barcos de passeio passavam lentamente. O ar tinha cheiro de folhas
húmidas e diesel distante. Caminhavam ao mesmo passo, mas cada um com o olhar
fixo em direções diferentes.
Foi ele quem quebrou o silêncio.
— Então… e quando chegares a Paris? Quais são os teus planos?
Ela hesitou, olhando para a superfície do canal como se fosse
encontrar lá a resposta.
— Não sei. — disse, por fim, com um encolher de ombros. — Não
pensei tanto à frente.
— Onde é que vais ficar? — insistiu ele.
Silêncio.
— Tens alguém lá?
Ela abanou a cabeça.
— Como é que vais ganhar dinheiro?
Ela mexeu nos cabelos, desconfortável.
— Vou arranjar qualquer coisa.
— E para os castings? Vais como? Precisas de te apresentar bem,
não é? Roupa, transporte…
As respostas dela foram sempre vagas ou inexistentes. Óscar deixou
o silêncio falar por si e não voltou ao assunto.
Abandonaram a margem do canal e seguiram para o centro histórico.
A primeira paragem foi na Place du Capitole,
onde a fachada imponente do edifício dominava a praça. Passaram algum tempo a
observar os detalhes arquitetónicos e a circulação de pessoas. Artistas de rua
desenhavam caricaturas, um músico tocava acordeão, e o ar cheirava a café
recém-moído das esplanadas.
Seguiram depois para a Basílica de Saint-Sernin,
imponente e silenciosa, com vitrais coloridos a projectar manchas de luz no
chão de pedra. Benedita percorreu o interior com atenção, enquanto Óscar
parecia mais curioso com as linhas da construção do que com qualquer simbolismo
religioso.
Ainda antes do almoço, fizeram uma pausa breve no Jardim Japonês de Compans-Caffarelli, um refúgio
verde com pontes de madeira e carpas a nadar sob nenúfares. Sentaram-se num
banco à sombra, ouvindo o som constante da água de uma pequena cascata.
Ao meio-dia escolheram um restaurante próximo do Marché Victor Hugo. Óscar pediu cassoulet, um guisado de feijão branco com confit
de pato e salsichas da terra. Benedita optou por magret de canard com batatas salteadas e molho de
frutos vermelhos. Provaram um pouco do prato um do outro e trocaram comentários
ocasionais sobre o sabor e a apresentação.
Depois de almoço, caminharam até às margens do Rio Garonne, atravessando a Pont Neuf para apreciar a vista da cidade
refletida na água. Ficaram ali alguns minutos, encostados à balaustrada, a ver
o movimento lento dos barcos e das gaivotas.
Pouco depois, decidiram regressar ao carro e deixar Toulouse para
trás.
A meio da estrada, já a caminho de Albi, Benedita comentou:
— Reparaste que não tens bagagem?
Óscar soltou uma gargalhada curta.
— Reparei, sim.
— Então?
— Então… a decisão da viagem foi um bocado súbita.
Ela virou-se para ele, intrigada.
— Súbita como?
Ele ajeitou a posição no volante, os olhos fixos na estrada.
— Estava num semáforo vermelho, num cruzamento, a caminho do
trabalho. E pensei que gostava mesmo de experimentar o carro em Nürburgring.
Quando ficou verde, em vez de seguir em frente… virei à esquerda.
Benedita piscou os olhos, sem saber se ele estava a brincar.
— Só assim?
— Só assim.
Ficou a olhá-lo, como se tentasse medir até que ponto ele podia
estar a dizer a verdade. Mas não havia sorriso de ironia, nem qualquer esforço
para impressionar. Era apenas um facto.
Chegaram a Albi já com a luz a
descer. A cidade parecia feita de tijolo cor de terracota, e ao longe a Catedral de Sainte-Cécile erguia-se como uma
fortaleza gótica, imensa e sólida contra o céu da tarde.
Subiram a rua estreita que levava à entrada. Por fora, as paredes
altas e quase lisas davam-lhe um ar de fortaleza mais do que de igreja. Mas ao
entrar, o mundo mudou.
O interior estava mergulhado num silêncio fresco, e o ar cheirava
a pedra antiga e cera derretida. Vitrais altos filtravam a luz em manchas
azuis, vermelhas e douradas que se projectavam no chão. O tecto abobadado,
pintado com frescos minuciosos, parecia tão alto que obrigava o olhar a
perder-se. Filas de colunas finas sustentavam a nave como um bosque
petrificado. O coro, ricamente talhado em madeira, era um labirinto de
detalhes.
Benedita parou a meio do corredor central, a cabeça inclinada para
trás, como se tentasse absorver tudo de uma vez. Óscar ficou mais atrás,
olhando em volta com um respeito silencioso, quase surpreso com a própria
reação.
— É… grande. — disse ele, num tom que não fazia justiça ao que lhe
ia no rosto.
— É muito mais que grande. — murmurou ela.
Ficaram ali alguns minutos, cada um imerso na sua própria sensação
de pequenez diante daquela construção, antes de saírem para as ruas que
começavam a encher-se de sombras.
Jantaram num restaurante local, uma sala de pedra baixa com luzes
quentes. Conversaram pouco, mas houve uma leveza nova na forma como partilharam
o pão.
Depois do jantar, caminharam até um hotel próximo. Na receção,
Óscar pediu um quarto com duas camas individuais. O empregado, preenchendo o
registo, ergueu os olhos.
— A identidade da rapariga, por favor?
Óscar respondeu sem hesitar:
— É minha filha. Benedita Campos.
Ela ficou a olhá-lo, surpresa, mas ele apenas assinou o papel e
devolveu-lhe a caneta, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
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