sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 5


 

Já iam em França havia meia hora quando Óscar tirou os olhos da estrada por breves segundos e fixou um painel castanho à beira da autoestrada. Um letreiro turístico com letras brancas anunciava:

Foix — Château Médiéval

Uma imagem do castelo desenhava-se ao lado, num traço quase romântico: torres altivas numa colina, com o vale a seus pés.

Sem dizer palavra, ele mudou de faixa e saiu da estrada principal.

Ela franziu o sobrolho e olhou para ele.

— Porquê? Saímos do caminho?

— Quando não se tem destino... mais vale aproveitar a viagem. — respondeu ele, sem tirar as mãos do volante.

Ela não sorriu.

— Mas nós temos um destino.

Ele apenas sorriu, como se não valesse a pena explicar o que acabara de dizer.


A cidade de Foix revelou-se aos poucos, aninhada entre colinas verdejantes. Ruas estreitas, pedras antigas, fachadas coloridas, o murmúrio de uma cidade que envelheceu com dignidade.

Estacionaram o carro ao fundo de uma ruela íngreme e subiram a pé até ao castelo. A fortaleza, empoleirada sobre um afloramento rochoso, dominava a paisagem com as suas três torres robustas — vestígios de um tempo de guerra e honra, agora convertidos em museu e miradouro.

A visita foi feita em silêncio. Passaram pelas salas escuras onde antigos senhores feudais planearam batalhas, viram armas penduradas em paredes de pedra, escadas estreitas que levavam a pontos de vigia, onde o vento parecia carregar séculos de histórias. No alto da torre mais antiga, observaram o vale inteiro — a cidade a seus pés, as casas apinhadas, as florestas ao longe, a estrada por onde tinham vindo.

Ali em cima, o mundo parecia quieto. Ele tirou os óculos escuros e ficou algum tempo a olhar a distância. Ela apoiou-se na muralha, sem dizer nada.


Desceram devagar e acabaram por encontrar uma esplanada sombreada, com vista parcial para o castelo. Um restaurante simples, com toalhas de pano e cheiro a carne grelhada.

Ela parou à porta, hesitante.

— Eu... não tenho dinheiro.

Ele virou-se para ela com naturalidade.

— Eu também não te pedi nada.

— Mas...

— Estás convidada.

Ela não se mexeu. A dúvida no rosto era maior do que a fome.

— O que é que queres de mim?

Ele sentou-se à mesa, puxou a cadeira ao lado e respondeu, olhando para a carta:

— Nada.

Ela sentou-se, devagar.

— Nada?

— Nada. — repetiu ele.

O silêncio prolongou-se entre os ruídos de talheres e conversas em francês ao redor.

Foi ele quem retomou:

— Achaste que eu queria alguma coisa de ti?

Ela não respondeu logo. Depois assentiu com a cabeça, sem o encarar.

Ele inspirou devagar.

— Sabes... — começou, pousando os cotovelos na mesa — quando te vi na estrada, nem ia parar. Nem pensei nisso. Mas houve qualquer coisa na tua postura... no modo como estavas ali, sozinha, firme… não sei. Tocou-me. Lembrou-me as minhas filhas.

Ela olhou para ele, surpresa.

— Não podia, em consciência, deixar uma rapariga sozinha num sítio daqueles.

Houve um silêncio breve. Depois ele perguntou:

— Como é que foste ali parar?

Ela baixou os olhos. O garçom aproximava-se, mas ele fez-lhe sinal para esperar.

— Tinha apanhado boleia com um camionista. Ia para Paris. — começou ela, devagar. — No início foi simpático. Mas depois... começou a deixar claro que queria "alguma compensação" pela viagem. Quando eu disse que não... ele deixou-me ali mesmo. No meio do nada.

Ela encolheu os ombros, num gesto que tentava ser leve, mas que doía só de se ver.

— Estive ali horas. Até tu parares.

Óscar não disse nada durante alguns segundos. Apenas olhava para ela, com a expressão fechada de quem compreende mais do que gostaria.

— Achaste que os meus motivos eram os mesmos dele?

Ela acenou, sem vergonha.

— Ainda achas?

Desta vez, ela olhou-o de frente.

— Não.

O garçom aproximou-se novamente. Óscar fez sinal para que se aproximasse.

— Vamos almoçar? — disse, como quem muda de capítulo.

Ela assentiu. E pela primeira vez em dias, pareceu respirar com menos peso.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 4

 


A paisagem francesa abria-se como uma sucessão de postais em movimento. Colinas suaves, campos de girassóis, pequenas aldeias de telhados vermelhos adormecidas sob o sol. O Corvette seguia pela estrada nacional com o motor contido, como se respeitasse o silêncio que pairava dentro do carro.

Óscar mantinha-se concentrado na estrada, mas os olhos iam e vinham, alternando entre o horizonte e o rosto dela, à sua direita. Por fim, perguntou, com a voz calma de quem não quer ferir:

— E a tua família?

Ela demorou a responder. Não foi um silêncio de dúvida — foi o silêncio de quem precisa recuar no tempo, buscar uma resposta demasiado antiga.

— Não tenho. — disse, simplesmente.

Ele lançou-lhe um olhar de soslaio, rápido. Depois voltou a focar-se no volante.

Ela continuou, com a voz nivelada:

— Fiquei órfã aos seis anos. Os meus pais morreram num acidente de carro.

Ele não esperou que ela desenvolvesse.

— Lamento.

— Não faz mal. — respondeu ela logo, sem hesitação. — É só um facto. Já foi há muito tempo. Nem sequer me lembro do rosto deles.

Houve algo de seco e definitivo naquelas palavras. Como se ela não tivesse dito aquilo para provocar pena, mas apenas para pôr ordem na cronologia da conversa.

— Fui criada num orfanato. — prosseguiu, após uma pausa. — Lá pelos arredores de Leiria. Não era mau, mas também não era casa. Quando fiz dezoito, tive de sair. Deram-me um emprego e um quarto. Coisa modesta. Salário mínimo. Só percebi depois que, depois da renda, mal tinha dinheiro para comer.

Fez uma pausa curta e suspirou.

— Então... mandei tudo para trás. Peguei na mochila e decidi vir para Paris. Tentar a sorte.

Óscar manteve-se em silêncio durante alguns segundos. Depois disse:

— Foi por isso que estavas à boleia?

Ela assentiu levemente.

— Não tinha dinheiro. E... também gosto da aventura.

Ele esboçou um sorriso.

— Já te meteste em alguma situação chata?

A expressão dela mudou. Não abruptamente — foi mais como uma sombra a passar pelo rosto. Ficou calada por uns segundos, olhando a estrada como se o alcatrão pudesse oferecer-lhe outra resposta.

— Já. — respondeu enfim. A voz agora era menos firme. — Mas não importa.

Ele não insistiu.

O carro continuou a rodar, veloz e silencioso, entre campos abertos e memórias que se ficavam por dizer.

Durante algum tempo, o carro seguiu em silêncio. As perguntas pairavam no ar como folhas secas que ninguém queria apanhar.

Mas foi ela quem acabou por retribuir a curiosidade, com voz calma:

— E a tua família?

Ele encolheu os ombros, sem desviar o olhar da estrada.

— Devem estar em casa. Provavelmente. Ou então não.

Ela franziu o sobrolho, ligeiramente confusa.

— Então por que é que estás aqui... sozinho?

Ele soltou uma risada breve e sem alegria.

— Porque mais vale só do que mal acompanhado.

A resposta ficou a ecoar durante alguns segundos. Ela olhou-o de esguelha, hesitante.

— Há... problemas familiares?

Ele curvou os lábios num sorriso amargo.

— "Problemas familiares" é um termo simpático. Não abarca o que se está a passar.

Ela ficou calada por um momento, como se ponderasse até onde podia ir.

— Estás a fugir de alguma coisa?

Desta vez, ele não respondeu logo. Continuou a conduzir por mais uns bons quilómetros, o silêncio entre eles de novo preenchido apenas pelo motor, pelo som abafado da estrada a passar sob as rodas.

Depois disse:

— Conheces os aborígenes australianos?

Ela abanou a cabeça.

— Têm uma coisa chamada walkabout. É uma espécie de ritual... quando um jovem chega a certa idade, larga tudo e vai sozinho para o deserto. Dias, semanas, às vezes meses. Sem rumo. Para se encontrar, ou para perder-se. Às vezes as duas coisas são a mesma.

Ele respirou fundo. A estrada seguia plana à frente, e o céu começava a mudar de tom — um azul mais pálido, com nuvens longas como pinceladas.

— Estou a fazer mais ou menos isso.

Ela olhou-o durante alguns segundos, como quem vê uma peça de puzzle a encaixar-se. Depois voltou-se para a frente.

— Faz sentido. — murmurou.

E ficaram assim, lado a lado, duas solidões em movimento. Ele em busca de alguma coisa que talvez não queira encontrar. Ela à procura de tudo o que ainda não tem.


quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 3

 


Saíram do quarto pouco depois das oito, ambos já vestidos e com os rostos ainda meio apagados pela noite mal dormida.

Ela trazia novamente a roupa do dia anterior, agora seca e ligeiramente amarrotada. O cabelo apanhado de forma apressada, os olhos ainda cansados. Ele mantinha o mesmo tom prático de sempre: t-shirt escura, jeans, óculos de sol já no rosto antes mesmo de saírem para a luz.

Trocaram poucas palavras na receção. Apenas o necessário. Um bom dia murmurado à senhora idosa, um obrigado seco no momento do pagamento. Saíram para a rua fria e silenciosa, onde o Corvette os esperava como um animal inquieto ao sol.

A estrada serpenteava ainda entre montes e aldeias pequenas quando pararam num restaurante à beira da estrada — desses com toldo esbatido, mesas de ferro e cheiro persistente a café queimado.

Sentaram-se junto à janela, de frente um para o outro, cada um com a sua chávena e o seu prato — croissants, pão com manteiga, sumo de laranja. Comeram em relativo silêncio. Ela parecia ainda meio ausente, os olhos vagueando pela janela como se procurassem qualquer coisa na paisagem. Ele, por seu lado, parecia prisioneiro de um mau acordar: sobrancelhas carregadas, movimentos curtos e secos, o café bebido em goles bruscos.

As únicas frases trocadas foram funcionais:

— Queres açúcar?

— Não, obrigado.

— Vais comer isso?

— Sim.

Nada mais.

Voltaram à estrada já perto das dez. O sol começava a subir, quebrando o frio da manhã. A paisagem tornava-se mais suave, menos agreste. A linha invisível da fronteira passou por eles com um pequeno sinal azul onde se lia FRANCE, ladeado pelas estrelas da União Europeia.

Foi só ali, depois de quilómetros partilhados e palavras evitadas, que ela se virou finalmente para ele.

— Chamo-me Benedita.

Ele olhou-a de relance, sem surpresa, e depois deixou que um pequeno sorriso se desenhasse nos lábios.

— Óscar. — respondeu. — Muito prazer, Benedita.

Ela voltou o rosto para a frente, mas esboçou um sorriso discreto. E naquele breve instante, entre uma curva e outra, havia qualquer coisa de novo no ar — como se tivessem finalmente atravessado não só uma fronteira geográfica, mas outra mais funda, mais difícil de nomear.

O silêncio voltou, mas já não era o mesmo. Havia nele agora uma espécie de trégua tácita, uma aceitação de presença. A estrada tornava-se mais plana, os campos abriam-se em tons de trigo e verde claro, e o sol, subindo, ia secando o que restava da noite.

Ela olhou pela janela durante algum tempo, depois voltou-se de novo para ele:

— Já ias para Paris?

Ele abanou a cabeça, sem tirar os olhos da estrada.

— Não.

Ela esperou um momento antes de perguntar:

— Então... por que vais?

— Para te deixar lá.

A resposta saiu num tom simples, como quem diz um facto. Sem floreados, sem pose de salvador.

Ela ficou a observá-lo, talvez a tentar perceber o que havia por trás daquela disponibilidade. Depois perguntou:

— E depois?

Ele deu uma leve risada, mas não respondeu de imediato. O motor ronronava com gosto, embalado pela estrada lisa.

— Depois… quero ir até Nürburg.

— Nürburg?

— Sim. — disse ele, finalmente virando-se ligeiramente para ela. — Para experimentar este carro no circuito de Nürburgring.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— A sério?

— A sério. — confirmou, agora com um brilho nos olhos que não tinha mostrado antes. — E além disso… sempre posso aproveitar para esticar o carro nas Autobahns. Na Alemanha há troços sem limite de velocidade. E este bicho foi feito para correr.

Ele pousou brevemente a mão sobre o volante, como quem afaga um animal de estimação.

Ela ficou em silêncio. Olhava-o agora com uma curiosidade nova — como se, pela primeira vez, visse nele alguém que também estava em fuga, mesmo que não dissesse. Não fugia de ninguém em particular. Mas fugia de ficar parado.

Talvez fosse isso que os ligava sem saberem.

Dois corpos em trânsito.

O carro deslizava pela autoestrada com uma suavidade quase irreal. O ronco do motor, mesmo contido, fazia-se sentir mais no peito do que nos ouvidos. O mundo lá fora parecia correr devagar ao lado deles, enquanto tudo dentro do Corvette se mantinha em suspensão — um fragmento de estrada, um momento suspenso no tempo.

Ela quebrou o silêncio de novo, com uma pergunta aparentemente inocente:

— Tens este carro há muito tempo?

Ele esboçou um sorriso, como se a pergunta o divertisse.

— Dois dias.

Ela virou-se para ele, surpreendida.

— Dois dias?

— Sim. — assentiu, mantendo o olhar fixo na estrada. — Comprei-o e decidi fazer esta viagem. Sem destino certo. Só para o conduzir. Para o conhecer.

Fez uma pausa curta, e depois acrescentou:

— A maior parte das pessoas compra carros destes para os mostrar aos amigos ao fim de semana. Tirar umas fotos, dar umas voltinhas, parecer bem no Instagram. — Encolheu os ombros. — Eu comprei-o para o usar. Para o ouvir. E, se possível, para andar depressa.

Ela não respondeu logo. Havia uma sinceridade crua nas palavras dele. Não era vaidade. Era outra coisa. Um tipo de prazer solitário. Um gesto de afirmação tardia.

Passaram mais alguns quilómetros em silêncio, até ele lançar-lhe um olhar de lado, quase casual:

— E tu? De onde é que és?

— De perto de Leiria. — respondeu ela, depois de uma pequena hesitação.

Ele soltou um assobio curto.

— Estás longe de casa.

Ela não disse nada, mas os olhos perderam-se de novo na paisagem. Campos planos, fileiras de árvores, a sombra azulada de colinas distantes.

— E tu? — perguntou, depois de algum tempo. — De onde és?

— Braga. — respondeu ele, sem hesitar.

— Também vieste longe.

Ele deu uma leve risada.

— Quando sais sem destino, qualquer lugar pode ficar longe.

Ela assentiu devagar, sem sorrir. Talvez pensasse o mesmo — embora, no caso dela, o lugar de onde viera não fosse apenas geográfico.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo 2


 

A porta abriu-se com um rangido discreto. Ele entrou com dois sacos de papel nas mãos, o cheiro a batatas fritas e gordura doce a invadir de imediato o quarto. A luz continuava acesa, e a janela deixava entrar uma réstia da noite lá fora — uma brisa leve, fresca, montanhosa.

Ela estava sentada na cama, pernas cruzadas, com o cabelo ainda húmido a escorrer em fios pelos ombros. Trazia vestida uma t-shirt larga demais para o seu corpo — uma daquelas que se vendem em postos de estrada com slogans esquecíveis — e que lhe caía como um vestido improvisado, tapando-lhe quase até aos joelhos. A roupa do dia secava num cabide improvisado à porta da casa de banho.

Ela olhou para ele quando entrou, mas não disse nada.

Ele pousou os sacos sobre a mesa de cabeceira e, com um gesto prático, abriu-os.

— Trouxe o menu completo. Batatas, hambúrguer, refrigerante… o pacote todo. — disse, com um meio sorriso. — Não me culpes se estiver frio.

Ela esboçou um agradecimento quase imperceptível, pegando na caixa mais próxima com um cuidado que destoava do contexto. Desta vez, comeu devagar. Comedida. Como se cada dentada fosse medida e controlada. O apetite voraz da tarde desaparecera, substituído por uma contenção quase cerimonial.

Entre eles, a televisão presa à parede debitava o som abafado de uma série americana dobrada em espanhol — vozes com pouco nexo, cheias de clichés e gargalhadas de estúdio.

Comeram assim: um ao lado do outro, mas cada um no seu espaço. Ele sentado no sofá. Ela na beira da cama. A luz amarela do abajur fazia sombras suaves nas paredes.

Quando terminaram, ele recolheu os restos — caixas de cartão, guardanapos manchados, copos de refrigerante a meio. Levantou-se, colocou tudo no pequeno caixote do lixo ao lado da cómoda, limpou as mãos aos jeans e voltou a sentar-se.

Ela ficou em silêncio, os olhos pousados na televisão sem realmente ver.

Ele olhou-a, levemente inclinado para a frente, e disse, num tom neutro mas claro:

— Podes ficar com a cama à vontade. Eu fico no sofá.

Ela virou-se para ele, como quem esperava ouvir outra coisa. Os ombros relaxaram, quase imperceptivelmente.

— Obrigada. — disse, baixo.

Sem cerimónias, ela deitou-se, puxando a colcha até à cintura. Enrolou-se devagar, como quem se protege do mundo com tecido alheio. Voltou-lhe as costas.

Ele apagou a luz da mesa de cabeceira, deixando apenas a da casa de banho, entreaberta, a iluminar o quarto com um tom pálido e frio.

Encostou-se no sofá. Não era confortável, mas era suficiente. Cruzou os braços, olhou o tecto durante alguns minutos. Depois fechou os olhos.

O ruído da televisão, agora quase murmúrio, enchia o espaço entre eles. E durante muito tempo, foi tudo o que se ouviu.

O quarto mantinha-se mergulhado numa penumbra macia. Só a luz da casa de banho, difusa, azulada, se filtrava pela porta entreaberta. Lá fora, o som longínquo de um carro passava pela estrada. A televisão, agora em volume quase inaudível, continuava a debitar episódios que ninguém via.

Ela já se deitara, o corpo enrolado sob a colcha, de costas para ele. O sofá rangia sob o peso dele, que se mantinha imóvel.

Passaram-se alguns minutos até ele falar.

— Não tenhas ideias esquisitas durante a noite.

A voz saiu seca, sem rodeios. Não abriu os olhos. Não mudou o tom. Como quem avisa, não como quem teme.

— Tenho sono leve. E tudo o que tenho de valor está trancado no carro. E não vais conseguir acesso.

O silêncio que se seguiu foi denso. Ela respirou fundo antes de responder.

— És sempre assim tão… pessimista?

Ele abriu um olho, devagar. Depois o outro. Virou ligeiramente a cabeça na direção dela, embora a luz mal lhe revelasse o rosto.

— Pessimista?

— Sim. — disse ela, com a voz ainda baixa. — Pelo que disseste agora. E também pela forma como reagiste quando eu falei de ir para Paris.

Ele soltou uma gargalhada breve, rouca.

— Isso não é pessimismo. É realismo.

Ficou um instante calado, e depois acrescentou, num tom que se tornou mais grave, mais cansado:

— Quando tinha a tua idade, também era um idealista. Durante muito tempo, aliás. Via o mundo com lentes cor-de-rosa. Acreditava em coisas boas, em planos, em finais felizes. Mas depois… há uma altura em que tiras os óculos.

Ela não disse nada.

Ele continuou, quase como se falasse para o escuro:

— E quando isso acontece… vês o mundo como ele é. E o mundo é feio. Não quer saber dos teus sonhos. Nem dos teus sentimentos. Podes passar a vida a cuidar de alguém, a despejar tudo o que tens nessa pessoa, e ainda assim descobrir que para ela… foste só útil. Como uma ferramenta. Uma ponte. E uma ponte não se ama. Usa-se.

A voz dele endureceu, mas não subiu.

— Mesmo quem diz que te ama… pode não te respeitar. E sem respeito… nada vale a pena.

Do outro lado do quarto, ela não respondeu de imediato. A colcha mexeu-se ligeiramente. Talvez estivesse a tentar encontrar nova posição. Talvez só estivesse a digerir as palavras.

Depois disse, num fio de voz:

— Boa noite.

Ele fechou os olhos outra vez.

— Boa noite. — murmurou.

O quarto ficou de novo em silêncio. Mas agora havia algo mais espesso no ar — uma memória partilhada sem nomes, uma dor sem explicação, uma trégua silenciosa entre dois desconhecidos que talvez, naquela noite, se tenham compreendido um pouco mais.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Depois do Inferno Verde - Capítulo I

 


A tarde abrasava a encosta, e o alcatrão ondulava sob o calor, como se respirasse. A estrada serpenteava pela montanha acima, estreita, ladeada por pinheiros altos e falésias de pedra seca. Ao longe, as linhas azuis das montanhas pirenaicas começavam a erguer-se, ameaçadoras e serenas.

Uma rapariga caminhava de costas. Passos ritmados, cautelosos, olhos atentos à curva seguinte, o polegar estendido na esperança vã de que alguém parasse.

Não devia ter mais de dezoito anos. Ou talvez nem isso. O cabelo castanho preso num rabo-de-cavalo desalinhado, colado à nuca com suor. T-shirt branca já manchada de pó e esforço. Calções de ganga curtos, botas de caminhada já bem gastas. Às costas, uma mochila pequena — daquelas que não são feitas para travessias, mas que ela levava como se não tivesse escolha.

O rosto estava tenso. Um misto de exaustão, frustração e teimosia. As bochechas queimadas pelo sol, os lábios secos. Já perdera a conta aos carros que tinham passado por ela — alguns nem abrandavam. Outros desviavam o olhar como se ela fosse parte da paisagem. Um mosquito. Uma sombra.

Então ouviu o som diferente.

Não o rugido comum de um utilitário ou carrinha velha, mas um ronco grave, abafado e metálico. Um carro caro. Um carro rápido. Um carro que não devia estar ali.

O Corvette C8 apareceu na curva com o brilho do sol a bater no capô inclinado. Vermelho. Brilhante. Moderno. O tipo de carro que devia estar a rolar junto à praia, não a subir uma estrada de montanha onde mal cabia.

Ela virou-se com um gesto automático e ergueu o braço.

O carro passou por ela.

E, por um momento, pareceu igual aos outros.

Mas vinte metros adiante, as luzes de travão acenderam-se. O carro imobilizou-se com um sopro de potência contida. Ela ficou parada durante um segundo, incrédula. Depois começou a andar, rápida mas sem correr. O alcatrão queimava, e as solas já estavam gastas.

Dobrou-se ligeiramente para alcançar a janela do passageiro, que se abriu com um estalido elétrico.

Lá dentro, um homem.

Tinha talvez cinquenta e poucos anos, barba curta com alguns fios grisalhos e cabelo escuro penteado para trás. Usava óculos escuros com armação grossa, e uma t-shirt cinzenta que deixava ver braços bronzeados, ainda fortes. O carro cheirava a couro e desodorizante de estrada.

— Para onde vais? — perguntou, sem tirar os olhos dela. A voz era grave, mas sem dureza.

Ela deu um meio sorriso, encolhendo os ombros.

— Se me deixar na próxima cidade, já é bom.

O homem assentiu, como se fosse óbvio.

— Entra.

Ela abriu a porta com cuidado, tirou a mochila e sentou-se. O banco era baixo, apertado. Um carro feito para curvas, não para conforto. A mochila foi para o colo — não havia espaço para mais nada.

O homem engatou a mudança. O motor ronronou com prazer, e o Corvette voltou a lançar-se estrada acima.

No rádio, os Led Zeppelin tocavam. “Whole Lotta Love”. O volume estava alto, e ele cantarolava por cima, batendo os dedos no volante com ritmo, indiferente à presença dela. Como se ela fosse apenas mais um elemento do cenário. Como a estrada. Como a música.

Ela encostou a cabeça ao vidro, os olhos semicerrados pela luz, deixando o som envolvê-la enquanto as curvas se sucediam. Pela primeira vez naquele dia, não estava a caminhar. E isso, por si só, já era quase um alívio.

Conduziram durante um bom bocado, em silêncio, entre curvas apertadas e vales profundos onde o sol se filtrava pelas copas dos pinheiros. O rugido do motor preenchia tudo, mas não era um ruído incómodo. Era constante. Quase reconfortante. A rádio, sempre ligada, alternava entre baladas antigas e riffs suados de uma geração passada. Ele parecia conhecer todas as letras.

Ela, calada, com a mochila ainda ao colo, os olhos a seguirem os contornos da estrada que subia e descia em laços, não dizia nada. De quando em quando, lançava-lhe um olhar furtivo — à boca semicerrada a cantar, à forma como as mãos seguravam o volante com leveza, à linha de sombra por baixo dos óculos escuros.

O carro desviou-se para uma estação de serviço discreta, encaixada na berma de uma curva ampla. O letreiro dizia Área de Servicio El Serrat, letras a desfazerem-se sob o sol. Um toldo gasto cobria duas bombas de combustível. Havia uma loja anexa e duas mesas de madeira, numa zona de terra batida. Um camião TIR dormitava ao fundo, e dois turistas reformados tomavam café em copos de papel.

Quando o Corvette entrou no recinto, foi como se uma estrela de cinema tivesse interrompido o enredo quotidiano. As cabeças viraram-se com um reflexo automático. Um dos empregados parou de varrer e ficou estático. Os olhos de todos prenderam-se ao carro, ao brilho metálico do capô, ao contraste com a poeira acumulada no chão.

Ele desligou o motor e virou-se para ela, pela primeira vez em quilómetros.

— Tens fome?

Ela abanou a cabeça, rápida, sem pensar.

— Não... estou bem. Obrigada.

O tom era baixo, quase culpado. O estômago apertava-lhe, mas havia vergonha nas palavras. Ele olhou-a por um segundo. Não insistiu com voz. Apenas abriu a porta e saiu, fechando-a com um estalido firme.

Caminhou até à loja com passo tranquilo, mãos nos bolsos. Parou ao balcão e disse, com um sorriso meio irónico:

— Posso atestar?

O funcionário, um miúdo magro de cabelo oleoso, ficou a olhar para ele sem reação.

— ¿Perdón?

Ele franziu o sobrolho, recompôs-se e repetiu, desta vez com um sotaque quase cómico:

— ¿Puedo... llenar el depósito?

Um sorriso nasceu nos lábios do rapaz, que acenou e carregou num botão.

— Sí, claro. Gasolina, señor.

Ele saiu, pegou na mangueira e começou a abastecer. O som do combustível a entrar no depósito misturava-se com o zumbido das abelhas por perto. Quando terminou, voltou ao interior da loja e estendeu algumas notas ao rapaz, que agradeceu num castelhano automático.

— Y también — disse, apontando — duas destas.
Pegou em duas sanduíches plastificadas, com etiqueta colorida a prometer "delicias del mar". A seu lado, agarrou duas garrafas grandes de água.

Pagou sem pressa, saiu com os itens no saco de papel pardo, e regressou ao carro. Ela continuava sentada com a mochila ao colo, a olhar o mundo pela janela como quem olha um país estrangeiro.

Ele entrou, pousou o saco no colo dela.

— Toma.

Ela olhou-o como se fosse um gesto inesperado, quase suspeito. Pegou na sanduíche com ambas as mãos, num cuidado de cerimónia. Murmurou:

— Obrigada...

O carro arrancou devagar para sair da bomba, mas em vez de seguir caminho, virou imediatamente à direita e parou numa zona de terra batida, junto a uma mesa de piquenique.

Sem dizer palavra, ele saiu do carro. Esticou os braços ao sol. Esperou.

Ela hesitou, depois abriu a porta com lentidão, ainda com a mochila e a sanduíche na mão, e seguiu-o até à mesa.

Sentaram-se frente a frente. Ele destapou a própria sanduíche e deu uma dentada casual, como quem cumpre um ritual sem importância.

Ela, por outro lado, demorou-se. Olhou para o plástico, depois para ele, como se pedisse permissão uma segunda vez. Finalmente abriu a embalagem e, no primeiro trago, mostrou uma fome que já vinha de longe. Comeu rápido, como quem teme que lhe tirem o direito de o fazer. Depois parou, embaraçada, os olhos fixos nele.

Ele sorria, discreto. Não havia troça naquele sorriso. Apenas a constatação silenciosa de uma verdade simples: há dores que não se dizem — mas que se percebem.

Voltaram ao carro com gestos lentos, como se o calor da tarde e o silêncio da refeição improvisada tivessem deixado marcas nos músculos. Ela limpou as mãos ao fundo da t-shirt, tentando não sujar o assento. Ele colocou o cinto, ligou o motor, e o rugido familiar do Corvette devolveu-lhes a ilusão de movimento — como se, ao acelerar, pudessem deixar para trás não só o lugar, mas tudo o que traziam colado à pele.

A estrada voltava a enroscar-se na montanha como uma serpente velha e sábia. Curva após curva, a altitude subia e com ela o mundo parecia afastar-se mais e mais do que era terreno. Penhascos despontavam do lado direito, vales profundos do lado esquerdo, e o céu começava a tingir-se de laranja e azul escuro. Lá ao fundo, como uma pintura acidental, Andorra prometia luzes e frio.

Durante largos minutos, apenas o som do motor e do vento a embater nos espelhos.

Foi ele quem quebrou o silêncio, com uma pergunta casual, mas lançada como um anzol:

— Então... vais mesmo só até à cidade mais próxima?

Ela hesitou. Depois abanou a cabeça.

— Não. Quero ir até Paris.

Ele lançou-lhe um olhar breve por trás dos óculos escuros, mas não disse nada logo.

— Paris, hein?

— Sim. — O tom dela era firme, mas havia algo de frágil a vibrar por baixo da voz. — Quero tentar ser modelo.

A resposta caiu no interior do carro como uma gota num prato quente.

Durante um segundo ele ficou calado.

Depois riu-se. À gargalhada. Uma risada verdadeira, ruidosa, sem filtro. A estrada estreita obrigava-o a manter os olhos à frente, mas o riso sacudia-lhe os ombros.

Ela virou-se para ele com a cara carregada de indignação.

— O que foi? Acha que não sou bonita o suficiente?

Ele inspirou fundo, ainda com um sorriso nos lábios, mas a voz já sem gozo:

— Não é isso, miúda. Bonita... és. Mas raparigas como tu há às dúzias. Em cada esquina, em cada casting, em cada agência. E quase nenhuma chega a lado nenhum. E mesmo as que chegam... pagam caro.

— Eu acho que tenho o que é preciso. — respondeu ela, num tom mais seco, defensivo. — Não quero ser mais uma. Quero mesmo tentar.

Ele olhou-a de lado por um instante mais longo do que devia. Os faróis do carro cruzaram uma curva e iluminaram brevemente um rebanho de casas dispersas, enterradas no vale. Depois disse, sem ironia:

— Só se estiveres disposta a vender a alma ao diabo.

Ela não respondeu logo. Respirou fundo. Baixou os olhos.

Quando falou, foi em tom baixo, mas firme. Cada palavra pesada como uma pedra.

— Talvez já seja a única coisa que tenho para trocar.

Ele ficou em silêncio. O volante entre as mãos tornou-se, por um momento, algo para se agarrar mais do que para conduzir. O motor continuava a cantar, impassível, mas dentro do carro o ar ficou mais denso. Como se, de repente, tivessem entrado num túnel invisível.

Não falaram mais.

O céu escurecia à medida que subiam. As primeiras estrelas começavam a rasgar o pano da noite, e nas encostas, luzes dispersas surgiam aqui e ali, como constelações de aldeias esquecidas. Andorra aproximava-se. No horizonte, os postos de controlo da fronteira brilhavam como promessas ou ameaças — era difícil dizer qual.

Ele não a olhava. Ela não o olhava. Mas, por um instante, o silêncio entre os dois era a única coisa que fazia sentido.

A fronteira surgiu como um corte discreto no tecido da montanha. Sem filas, sem pressas. Passaram com um aceno de cabeça, os guardas mais interessados no Corvette do que nos passageiros. O carro seguiu, mergulhado na noite cada vez mais densa. As luzes tornavam-se escassas, e a estrada parecia uma fita de sombra enrolada nas encostas.

Foi ele quem quebrou o silêncio.

— Se quiseres… levo-te a Paris.

Ela virou-se devagar, como se tivesse ouvido mal.

— A sério? Porquê?

Ele deu de ombros, com um leve sorriso nos lábios.

— Nunca fui a Paris. Parece-me uma boa ideia.

Ela ficou a observá-lo. Queria perguntar mais, mas não perguntou. Voltou o olhar para a estrada. As mãos apertaram ligeiramente as correias da mochila, ainda ao colo.

— Está bem. — disse por fim, num tom quase neutro.

Seguiram por mais alguns quilómetros até a estrada os deixar numa vila adormecida, quase emboscada pela escuridão. Três ruas cruzadas, um coreto vazio, um café com as cadeiras já empilhadas. No final de uma subida íngreme, um letreiro apagado anunciava: Hostal Mont Vell.

Pararam. Ele desligou o motor. O calor do dia ainda se sentia na carroçaria do carro.

Dentro, a receção cheirava a madeira velha e desinfetante. Uma senhora idosa de olhos atentos e bata florida olhou-os com uma amabilidade prática.

— Só há um quarto disponível — disse, como quem apresenta um facto inegociável. — Os outros estão ocupados desde a tarde.

Ele não hesitou. Puxou da carteira.

— Fico com o quarto.

Ela manteve-se alguns passos atrás, em silêncio, a olhar para os sapatos.

Subiram as escadas estreitas até ao primeiro andar. O quarto era pequeno, aquecido por um candeeiro de parede e uma luz ténue vinda de uma janela entreaberta. No centro, uma cama de casal estreita, coberta por uma colcha antiga. Ao lado, uma mesa de cabeceira com um abajur, e encostado à parede oposta, um sofá gasto de três lugares.

Ela ficou imóvel à entrada, com a mochila ainda às costas, os olhos fixos na cama.

Ele pousou as chaves sobre a mesa e disse, num tom simples:

— Vai tomar um duche. Eu vou buscar qualquer coisa para comermos.

Sem esperar resposta, pegou na carteira de novo e saiu, fechando a porta com um clique seco.

Ela ficou sozinha.

O quarto era modesto, mas limpo. O som do motor do carro morria ao longe. Encaminhou-se devagar para a pequena casa de banho. No espelho oval por cima do lavatório, viu o rosto cansado, o cabelo desgrenhado, os olhos que pareciam mais velhos do que eram.

Fechou a porta atrás de si, num gesto quase solene.